sábado, setembro 20, 2008

Como retirar uma porca da engrenagem...

Nada é mais destrutivo que um político em pânico. Isto é especialmente verdade em ano de eleições!

Embora concorde que, por vezes, a psique humana se sobrepõe – parcial ou totalmente – aos fundamentais, o que se passou ontem é grave e altera fundamentalmente essa premissa de análise.
Vamos lá ver as reais implicações da já famosa “proibição ao short selling”, anunciada pela Securities and Exchange Commission (SEC), o regulador do mercado bolsista norte-americano.
Ao contrário do que circula por aí, o short selling não só não é mau, como é uma peça essencial neste processo que é o mercado. Da mesma forma que quem considera uma acção subavaliada pode “comprar” essa acção, exercendo pressão conjunta para “alinhar” o preço actual com um “justo” (por justo, entenda-se, ditado pela força do mercado), o mesmo raciocínio aplica-se ao short selling. Mais grave ainda, o short selling é a principal ferramenta para redução da “assimetria” num mercado. Se toda a gente apenas executar compras, os preços tornam-se bolhas. Também é uma parte essencial no processo de arbitragem entre acções de vários mercados: por exemplo, empresas cotadas ao mesmo tempo na Europa e nos EUA. “Shorta-se uma, compra-se a outra” é o mecanismo que mantém as acções com o mesmo “valor”, e é isto que se chama arbitragem.

Short selling é também um dos principais mecanismos de redução de risco num portfólio. Se a alguns isto não parecer fazer sentido, pensem no seguinte: imaginem que vocês consideram que as empresas do S&P500 estão saudáveis (não estou a fazer considerações sobre se estão ou não... o ponto é o processo), mas não têm confiança nenhuma nos bancos. Imaginem que vocês querem ter exposição ao índice – não tendo carteira para comprar as 500 acções. Compram o CFD ou o ETF. Mas não vos faz sentir muito bem saber que 30% – proporção das financeiras nos resultados totais do S&P500 – daquilo é potencial downside de bancos (outra vez, não estou a fazer considerações que sim ou que não). Então “shortam” bancos, ou melhor ainda, “shortam” o índice/ETF dos bancos, na proporção de 1/3 da vossa posição.
Assim, vocês têm um portfólio imunizado ao sector bancário, mas sujeito aos movimentos das restantes empresas. Note-se que, muito poucos investidores são “short sellers” puros, mesmo os hedge funds. Isto porque, enquanto que em long o limite é +infinito, em short o limite é +100% (abaixo de zero não vão, como é óbvio). O short selling é usado como imunização e cobertura de risco por 90% do mercado com volume. É, alias, uma actividade mais perigosa devido a squeezes. Bem, esta ferramenta acabou de desaparecer...

Mas mais grave ainda são as consequências para o mercado de opções.
Opções são um dos derivados mais importantes, a par dos futuros. Dão-vos o direito, mas não a obrigação, de comprar ou vender um activo a preço x, em época y. Dão-vos certeza num ambiente de incerteza. A liquidez primária é market makers e especuladores que tomam a posição contrária. Mas mesmo a “especulação” é bastante mortal (mais mortal que forex). Quem negoceia warrants (ou como eu, já negociou) sabe: 99% morre sem valor, ou apanham com grandes perdas.
O mercado de opções também é uma enorme fonte de informação. O famoso VIX é calculado a partir da volatilidade implícita das options sobre o S&P500. Mede o prémio pago nas puts (opções de venda, onde quanto maior a volatilidade, maior o preço a pagar pela protecção), pelo que é a medida por excelência de risco. Muitas probabilidades, preços e medidas de risco são extraídas dos preços e volatilidades implícitas das opções. O problema aqui é que, de modo ao mercado de opções operar correctamente é condição necessária haver short selling! Passo a explicar: quando vocês querem protecção, o market maker tem que fazer um hedge ao seu “livro de ordens”. Se não o fizer, ele tem de vos cobrar um prémio mais elevado, tornando a protecção mais cara e, por consequência, tornando o mercado mais arriscado. A forma pela qual ele, market maker, faz isto é via short selling da acção subjacente.

 É por isso que as “protecções” têm preços razoáveis.Se não existir short selling, além de secar a liquidez no mercado (pensem no mercado de warrants em Portugal, para terem uma ideia de um mercado de options não líquido e manipulável), introduz prémios mais elevados nas puts. Pela put-call parity (uma put pode ser convertida numa call, uma opção de compra, e vice versa), torna as calls mais caras. No limite, isto pode levar a uma disrupção parcial ou total do mercado de opções, uma peça fundamental na gestão de risco.
E se as pessoas não podem, ou não têm dinheiro para cobrir os seus riscos – seja por não poderem shortar ou pelas puts estarem caras demais –, isso significa que preferem não comprar, dado que o investidor médio é avesso ao risco. E a ausência de compradores também provoca quedas, dado que quem que “oferecer”/vender, tem de ir baixando o preço à procura de alguém!
Uma outra nota importante da ausência de short sellers é que, em quedas, estes são os únicos que estão a comprar. À medida que o preço vai descendo, eles vão profit taking – comprando –, amparando a descida. À medida que esta abranda outros short sellers seguem na cobertura. O short selling tem uma função de “almofada”, almofada essa que não existe neste momento... Esta disrupção poderá significar o fim de muitos fundos, não só long-short hedge funds, mas fundos 130-30 e fundos de arbitragem, cujas contas estão precisamente em bancos importantes como a Goldman Sachs ou a Morgan Stanley (e a última coisa que estas firmas precisam é que fundos de investimento as forcem a encerrá-las).

Uma má ideia nunca vem só


Sobra uma questão, que muitos poderão fazer: os bancos, com isto, não vão descer mais?! Bem, isso não é necessariamente verdade. O problema reside no RTC-II. Para quem não sabe, o RTC-II é o Resolution Trust Corp, versão 2. Versão 2, porque a primeira versão surgiu no final dos anos 80, início dos 90. Quando as Savings & Loans faliram, a FDIC – a “seguradora” dos depósitos – ficou com imensos activos nas mãos. O RTC “original” serviu para vender esses activos no mercado aberto, e recuperar algum dinheiro perdido pelos contribuintes.


O problema aqui é que, embora tenha o mesmo nome – ao que parece vai ter, ainda não está confirmado –, é fundamentalmente diferente.
No último trimestre de 2007 surgiu a ideia do MLEC, também conhecido como “Super SIV”. Na altura em que o mercado de papel comercial falhou, pensou-se em criar um super fundo para armazenar o papel que o mercado não queria – ou pelo qual não estava disposto a pagar um preço alto. Note-se que este papel caiu, não por influência de “short sellers”, mas sim pela ausência total de compradores, forçando os “market makers” a anunciar bids sucessivamente mais baixos, de modo a descobrir alguém disposto a comprar.

A ideia falhou por duas razões fundamentais.
1• Os potenciais vendedores queriam “preços justos” – justos para os seus balanços, entenda-se;
2• Os potenciais compradores não estavam dispostos a oferecer “preços justos”, pois consideravam que estavam a pagar demais por “lixo”.
Ora, o RTC-II é a mesma ideia, mas agora em grande – a proposta de lei prevê um valor total de 700 mil milhões de dólares. E com uma diferença fundamental: desta vez é o contribuinte americano que vai para o “lugar do morto”.


Mas a grande questão nem reside aqui, mas sim no preço dado. Muitos bancos moveram muito deste papel – que já não transacciona – para Level 3 assets, ou seja, mark to model. Isto é uma grande palavra para “cria-se um modelo que dê o preço que nós queremos que isto valha”. Muitos bancos têm mais “dinheiro” aqui do que na conta de capital próprio dos seus balanços (a Goldman Sachs e a Morgan Stanley, por exemplo, estão nesta situação, entre outros). A desculpa, autorizada pelos reguladores, é “não existirem preços públicos”. Ora, o RTC-II divulgaria um preço “público”, e forçaria perdas nesta parte do balanço. A única maneira de evitar este cenário era não divulgar o preço das “compras” do RTC-II. Mas isto constitui dois problemas adicionais.
Em primeiro lugar, a confiança no sistema. Isto é, o “livro de regras do Japão”; e todos sabemos como essa feliz história acabou, com uma pequena diferença: o Japão tinha 30% de taxa de poupança. Os EUA são dependentes de “financiamento externo” e, em última análise, do seu Rating AAA

Ou melhor, da percepção do seu rating, porque mesmo que não o alterem, alguém julga que os investidores não vão exigir maiores prémios de risco, depois de medidas dignas de países como a Rússia, o Paquistão ou a Venezuela?


Em segundo lugar, não divulgando os preços, o RTC-II terá obrigatoriamente de exigir posições accionistas em troca (há mesmo quem argumente que isto acontecerá de qualquer maneira, porque os bancos serão descapitalizados pelas recentes medidas tomadas). Ora, isto significa uma coisa: diluição dos actuais accionistas. E para os que estão a pensar “diluição” pensem “preço desce”. Lembrem-se dos aumentos de capital dos bancos britânicos e o efeito no preço das acções dos mesmos, que desceram porque foram diluídas. A única diferença aqui é que o “subscritor” é o Estado.
E não se esqueçam que não há ninguém para amparar a queda, fazendo profit taking durante essa diluição, e as puts estão mais caras, pelo que a percepção de risco aqui irá ser maior, criando um efeito bola de neve no aumento do prémio de risco norte-americano.
É por tudo isto que, fazer contas ao fim da crise ou ao fim das descidas na bolsa, neste momento, é um exercício de “leitura de folhas de chá”, ou futurologia educada. O dólar estará sobre pressão, apenas com os bancos centrais do mundo como suporte, o mercado de opções pode ter disrupções, os hedge funds podem liquidar, preços podem ser descobertos...


O que se fez e anunciou sexta-feira, atrevo-me a dizer que ficará para a história como um dos maiores erros de intervenção, a par da descida até 1% por parte de Greenspan, ou a política japonesa durante a crise deles.
No entanto, espero, honestamente, estar profundamente errado!

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